De Stela Maris a Bico da Bota: a história de resiliência
Carolina Freitas
Tal qual os livros, em cada trama eles guardam suas próprias histórias e aventuras. À disposição para quem queira desvendar, assim são os calçados do outro. Alguns mais discretos, outros mais extravagantes, eles dão lição de perseverança e companheirismo, independente do ano de lançamento. Desdobramento da antiga Stela Maris, é assim que opera a Bico da Bota: sapataria petropolitana com 24 anos de fundação que, diretamente impactada pelas duas últimas enchentes, tem se firmado na união e na empatia.
Nas chamadas remarcações, as promoções são várias e, às vezes, incluem o desejado 2 por 1 em que, na compra de um par, leva-se o outro. Para a aposentada Mirtes Menescal da Silva, de 76 anos, é praticamente essa a lógica dos casamentos. Construídos em cima dos esforços em prol do casal, eles se sustentam no equilíbrio e no comprometimento. Assim, chega um momento em que não se trata mais do eu, mas do “nós”. Motivo que a levou, anos atrás, a abrir mão do emprego como professora e se dedicar ao futuro da Stela Maris.
Abreviação de Estela e Mariana, filhas de dona Mirtes com o português José Maria, a Stela Maris foi, realmente, erguida e construída com base no esforço coletivo da família. Atuante no caixa, crediário e escritório, era a petropolitana que, à época, estabelecia as relações públicas da loja. Com os nomes dos clientes na ponta da língua, preocupava-se em saber como andavam as famílias e acolhê-las. Ela professora e ele habituado ao ramo alimentício, a experiência consistiu no desafio de superar limites impostos pela mente e pelos outros.
“Quando o José fazia fichas para cadastro das indústrias, o que ele mais ouvia era que só entendia de cebola, batata, arroz e feijão. Ele tinha ficha no ramo de secos e molhados, mas era um administrador nato. Quando a gente viajava, ele comprava sapatos só para ver o endereço da fábrica na caixa”. Casados por 58 anos, os dois fundaram o próprio negócio no Shopping Pedro II após uma mudança drástica e urgente no ritmo de vida do português que, devido ao ritmo de trabalho intenso no bar e mercearia que detinha, entrou em estafa.
Transformadora, a experiência lhes permitiu calçar novos pares e observar a realidade por uma nova lente. Soma da lealdade da clientela e dos esforços da família e funcionários, o negócio, fundado em março de 1981, cresceu como faz um calçado conforme é utilizado, mas sem permitir a acomodação. Com a oferta de supletivo para os colaboradores e, posteriormente, de cursos para o aperfeiçoamento profissional, o negócio foi modelo de valores adotados pela equipe, como fez Maria de Fátima Bento Zanatta, de 64 anos.
Funcionária dos 19 aos 63 anos de idade, Fátima se orgulha em dizer que acompanhou o crescimento da Stela Maris – tanto no que diz respeito ao empreendimento, quanto às filhas e família do casal. Inspirada pela vontade de progredir do senhor José, pelo carisma de dona Mirtes e pela sede por aprendizado de Mariana, Fatinha se tornou não apenas uma funcionária exemplar, mas uma mãe que possibilitou os estudos do filho – Doutor em Astrofísica – a partir da honestidade de seu trabalho e comprometimento.
“A foto de formatura do meu filho somente quatro pessoas têm, e uma delas é a dona Mirtes. Esse registro está na estante da casa dela junto com as fotos dos netos. É um carinho que não se acaba com o tempo”. Do forninho de casa à educação do filho, a petropolitana diz que, embora aposentada, sua casa ainda é habitada por muito da empresa, a começar pelo carinho. Privilegiada por ter iniciado sua carreira nos primeiros anos de funcionamento da loja, Fátima a viu crescer e se desdobrar.
Além de colaborar com a primeira unidade, no Shopping Pedro II, ela ainda trabalhou nas filiais do Hiper Shopping e Obelisco, além da Real Modas – mais tarde adquirida pela família, e na Bico da Bota – fruto da Stela Maris. Hoje gerenciado por Mariana Menescal, o negócio tem na filha de dona Mirtes e do senhor José sua base de sustentação. Para Fatinha, os primeiros traços de empresária foram emitidos por Mariana ainda na infância e juventude: “Desde pequena ela era um segundo pai, com uma visão mais atual”.
Comprometida a, ainda pequena, abrir a loja diariamente junto do pai, desde cedo Mariana se interessou em acompanhar e aprimorar os processos que compõem o negócio. Aos 54 anos, ela trabalha no comércio há mais de 40 deles. Segmento que, sobretudo ultimamente, demanda muito de quem nele atua, mais do que capaz de empreender, o comerciante petropolitano precisa, a exemplo dos melhores modelos de tênis, se mostrar capaz de se adaptar às condições e respirar.
Às vezes sem ter de onde obter forças, é caminhando pela memória que se torna possível obter clareza o suficiente para tomar as decisões exigidas pelo momento. “Nem sempre é fácil, mas é saber que a gente volta e continua”. Onde até os móveis tem história, a empresa é prova da empatia existente em vestir os calçados do outro. Com as recentes enchentes que invadiram a loja, houve dias dos funcionários chegarem ao estabelecimento às cinco da manhã em um fim de semana para terminar de limpá-lo às dez da noite.
Supervisor da empresa, Luciano Baltar, de 47 anos, destaca a força obtida pela união da equipe. “Apesar de ser funcionário, eu tenho credibilidade para tomar as decisões que forem necessárias. A confiança dela é o que prevalece de melhor”. Fachada adentro, o que se nota é a preocupação comum em zelar por um patrimônio iniciado há mais de 40 anos por um português e sua esposa munidos por muita força de vontade, ainda que as condições estivessem longe de ideais.
Inspiração nos momentos de dificuldade, a história da Stela Maris – hoje Bico da Bota – ainda emociona Sônia Regina Neissius Vieira, de 73 anos. Após se divorciar, Soninha, que na época já se aproximava dos 40 anos de idade sem nunca ter trabalhado, teve no empreendimento a oportunidade de criar os filhos e ser independente. Colaboradora da empresa por 20 anos, ela era a mais velha das funcionárias, o que não diminuía em nada sua energia. Ainda mais com os patrões como exemplo diário de entrega e dedicação.
“Se eu vivi e comi nesses últimos anos, eu tenho é que agradecer a eles pela oportunidade. O Sr. José foi um guerreiro. Ele não tinha mais necessidade de trabalhar e em todas as lojas era o primeiro a chegar. Se conquistou o que teve é porque mereceu”. Chegando à conclusão de que “as coisas boas que nos acontecem ficam guardadas no nosso coração”, talvez seja essa a solução para os momentos em que não parece haver solução: caminhar pela própria história, calçar o sapato de quem a trilhou com você e dessa jornada aprende.